Revista Espírita.


Jornal de Estudos Psicológicos
ANO XII JULHO DE 1869 No 7
O Egoísmo e o Orgulho
SUAS CAUSAS, SEUS EFEITOS E OS MEIOS DE DESTRUÍ-LOS
(OBRAS PÓSTUMAS)
É bem sabido que a maior parte das misérias da vida
tem origem no egoísmo dos homens. Desde que cada um pensa em
si antes de pensar nos outros e cogita antes de tudo de satisfazer
aos seus desejos, cada um naturalmente cuida de proporcionar a si
mesmo essa satisfação, a todo custo, e sacrifica sem escrúpulo os
interesses alheios, assim nas mais insignificantes coisas, como nas
maiores, tanto de ordem moral, quanto de ordem material. Daí
todos os antagonismos sociais, todas as lutas, todos os conflitos e
todas as misérias, visto que cada um só trata de despojar o seu
próximo.
O egoísmo se origina do orgulho. A exaltação da
personalidade leva o homem a considerar-se acima dos outros.
Julgando-se com direitos superiores, melindra-se com o que quer
que, a seu ver, constitua ofensa a seus direitos. A importância que,
por orgulho, atribui à sua pessoa, naturalmente o torna egoísta.
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O egoísmo e o orgulho nascem de um sentimento
natural: o instinto de conservação. Todos os instintos têm sua razão
de ser e sua utilidade, porquanto Deus nada pode ter feito de inútil.
Ele não criou o mal; o homem é quem o produz, abusando dos
dons de Deus, em virtude do seu livre-arbítrio. Contido em justos
limites, aquele sentimento é bom em si mesmo. A exageração é o
que o torna mau e pernicioso. O mesmo acontece com todas as
paixões que o homem freqüentemente desvia do seu objetivo
providencial. Ele não foi criado egoísta, nem orgulhoso por Deus,
que o criou simples e ignorante; o homem é que se fez egoísta e
orgulhoso, exagerando o instinto que Deus lhe outorgou para sua
conservação.
Não podem os homens ser felizes, se não viverem em
paz, isto é, se não os animar um sentimento de benevolência, de
indulgência e de condescendência recíprocas; numa palavra:
enquanto procurarem esmagar-se uns aos outros. A caridade e a
fraternidade resumem todas as condições e todos os deveres
sociais; uma e outra, porém, pressupõem a abnegação. Ora, a
abnegação é incompatível com o egoísmo e o orgulho; logo, com
esses vícios não é possível a verdadeira fraternidade, nem, por
conseguinte, igualdade, nem liberdade, dado que o egoísta e o
orgulhoso querem tudo para si.
Eles serão sempre os vermes roedores de todas as
instituições progressistas; enquanto dominarem, ruirão aos seus
golpes os mais generosos sistemas sociais, os mais sabiamente
combinados. É belo, sem dúvida, proclamar-se o reinado da
fraternidade, mas, para que fazê-lo, se uma causa destrutiva existe?
É edificar em terreno movediço; o mesmo fora decretar a saúde
numa região malsã. Em tal região, para que os homens passem
bem, não bastará se mandem médicos, pois que estes morrerão
como os outros; insta destruir as causas da insalubridade. Para que
os homens vivam na Terra como irmãos, não basta se lhes dêem
lições de moral; importa destruir as causas de antagonismo, atacar
a raiz do mal: o orgulho e o egoísmo.
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Essa a chaga sobre a qual deve concentrar-se toda a
atenção dos que desejem seriamente o bem da Humanidade.
Enquanto subsistir semelhante obstáculo, eles verão paralisados
todos os seus esforços, não só por uma resistência de inércia, como
também por uma força ativa que trabalhará incessantemente no
sentido de destruir a obra que empreendam, por isso que toda idéia
grande, generosa e emancipadora arruína as pretensões pessoais.
Impossível, dir-se-á, destruir o orgulho e o egoísmo,
porque são vícios inerentes à espécie humana. Se fosse assim,
houvéramos de desesperar de todo o progresso moral; entretanto,
desde que se considere o homem nas diferentes épocas
transcorridas, não há negar que evidente progresso se efetuou. Ora,
se ele progrediu, ainda naturalmente progredirá. Por outro lado,
não se encontrará homem nenhum sem orgulho, nem egoísmo?
Não se vêem, ao contrário, criaturas de índole generosa, em quem
parecem inatos os sentimentos do amor ao próximo, da humildade,
do devotamento e da abnegação? O número delas, positivamente,
é menor do que o dos egoístas; se assim não fosse, não seriam estes
últimos os fautores da lei. Há muito mais criaturas dessas do que se
pensa e, se parecem tão pouco numerosas, é porque o orgulho se
põe em evidência, ao passo que a virtude modesta se conserva na
obscuridade.
Se, portanto, o orgulho e o egoísmo se contassem entre
as condições necessárias da Humanidade, como a da alimentação
para sustento da vida, não haveria exceções. O ponto essencial,
pois, é conseguir que a exceção passe a constituir regra; para isso,
trata-se, antes de tudo, de destruir as causas que produzem e
entretêm o mal.
Dessas causas, a principal reside evidentemente na idéia
falsa que o homem faz da sua natureza, do seu passado e do seu
futuro. Por não saber donde vem, ele se crê mais do que é; e não
sabendo para onde vai, concentra na vida terrena todo o seu
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pensar; acha-a tão agradável, quanto possível; anseia por todas as
satisfações, por todos os gozos; essa a razão por que atropela sem
escrúpulo o seu semelhante, se este lhe opõe alguma dificuldade.
Mas, para isso, é preciso que ele predomine; a igualdade daria, a
outros, direitos que ele só quer para si; a fraternidade lhe imporia
sacrifícios em detrimento do seu bem-estar; a liberdade também ele
só a quer para si e somente a concede aos outros quando não lhe
fira de modo algum as prerrogativas. Alimentando todos as
mesmas pretensões, têm resultado os perpétuos conflitos que os
levam a pagar bem caro os raros gozos que logram obter.
Identifique-se o homem com a vida futura e
completamente mudará a sua maneira de ver, como a do indivíduo
que apenas por poucas horas haja de permanecer numa habitação
má e que sabe que, ao sair, terá outra, magnífica, para o resto de
seus dias.
A importância da vida presente, tão triste, tão curta, tão
efêmera, se apaga, para ele, ante o esplendor do futuro infinito que
se lhe desdobra às vistas. A conseqüência natural e lógica dessa
certeza é sacrificar o homem um presente fugidio a um porvir
duradouro, ao passo que antes ele tudo sacrificava ao presente.
Tomando por objetivo a vida futura, pouco lhe importa estar um
pouco mais ou um pouco menos nesta outra; os interesses
mundanos passam a ser o acessório, em vez de ser o principal; ele
trabalha no presente com o fito de assegurar a sua posição no
futuro, tanto mais quando sabe em que condições poderá ser feliz.
Pelo que toca aos interesses terrenos, podem os
humanos criar-lhe obstáculos: ele tem que os afastar e se torna
egoísta pela força mesma das coisas. Se lançar os olhos para o alto,
para uma felicidade a que ninguém pode obstar, interesse nenhum
se lhe deparará em oprimir a quem quer que seja e o egoísmo se lhe
torna carente de objeto. Todavia, restará o estimulante do orgulho.
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A causa do orgulho está na crença, em que o homem se
firma, da sua superioridade individual. Ainda aí se faz sentir a
influência da concentração dos pensamentos sobre a vida corpórea.
Naquele que nada vê adiante de si, atrás de si, nem acima de si, o
sentimento de personalidade sobrepuja e o orgulho fica sem
contrapeso.
A incredulidade não só carece de meios para combater
o orgulho, como o estimula e lhe dá razão, negando a existência de
um poder superior à Humanidade. O incrédulo apenas crê em si
mesmo; é, pois, natural que tenha orgulho. Enquanto que, nos
golpes que o atingem, unicamente vê uma obra do acaso e se ergue
para combatê-la, aquele que tem fé percebe a mão de Deus e se
submete. Crer em Deus e na vida futura é, conseguintemente, a
primeira condição para moderar o orgulho; porém, não basta.
Juntamente com o futuro, é necessário ver o passado, para fazer
idéia exata do presente.
Para que o orgulhoso deixe de crer na sua
superioridade, cumpre se lhe prove que ele não é mais do que os
outros e que estes são tanto quanto ele; que a igualdade é um fato
e não apenas uma bela teoria filosófica; que estas verdades
ressaltam da preexistência da alma e da reencarnação.
Sem a preexistência da alma, o homem é induzido a
acreditar que Deus, dado creia em Deus, lhe conferiu vantagens
excepcionais; quando não crê em Deus, rende graças ao acaso e ao
seu próprio mérito. Iniciando-o na vida anterior da alma, a
preexistência lhe ensina a distinguir, da vida corporal, transitória, a
vida espiritual, infinita; ele fica sabendo que as almas saem todas
iguais das mãos do Criador; que todas têm o mesmo ponto de
partida e a mesma finalidade, que todas hão de alcançar, em mais
ou menos tempo, conforme os esforços que empreguem; que ele
próprio não chegou a ser o que é, senão depois de haver, por longo
tempo e penosamente, vegetado, como os outros, nos degraus
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inferiores da evolução; que, entre os mais atrasados e os mais
adiantados, não há senão uma questão de tempo; que as vantagens
do nascimento são puramente corpóreas e independem do
Espírito; que o simples proletário pode, noutra existência, nascer
num trono e o maior potentado renascer proletário.
Se levar em conta unicamente a vida planetária, ele vê
apenas as desigualdades sociais do momento, que são as que o
impressionam; se, porém, deitar os olhos sobre o conjunto da vida
do Espírito, sobre o passado e o futuro, desde o ponto de partida
até o de chegada, aquelas desigualdades se somem e ele reconhece
que Deus nenhuma vantagem concedeu a qualquer de seus filhos
em prejuízo dos outros; que deu parte igual a todos e não aplanou
o caminho mais para uns do que para outros; que o que se
apresenta menos adiantado do que ele na Terra pode tomar-lhe a
dianteira, se trabalhar mais do que ele por aperfeiçoar-se;
reconhecerá, finalmente, que, nenhum chegando ao termo senão
por seus esforços, o princípio da igualdade é um princípio de justiça
e uma lei da Natureza, perante a qual cai o orgulho do privilégio.
Provando que os Espíritos podem renascer em
diferentes condições sociais, quer por expiação, quer por provação,
a reencarnação ensina que, naquele a quem tratamos com desdém,
pode estar um que foi nosso superior ou nosso igual noutra
existência, um amigo ou um parente. Se o soubesse, o que com ele
se defronta o trataria com atenções, mas, nesse caso, nenhum
mérito teria; por outro lado, se soubesse que o seu amigo atual foi
seu inimigo, seu servo ou seu escravo, sem dúvida o repeliria. Ora,
não quis Deus que fosse assim, pelo que lançou um véu sobre o
passado. Deste modo, o homem é levado a ver em todos, irmãos
seus e seus iguais, donde uma base natural para a fraternidade;
sabendo que pode ser tratado como haja tratado os outros, a
caridade se lhe torna um dever e uma necessidade fundados na
própria Natureza.
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Jesus assentou o princípio da caridade, da igualdade e
da fraternidade, fazendo dele uma condição expressa para a
salvação; mas, estava reservado à terceira manifestação da vontade
de Deus, ao Espiritismo, pelo conhecimento que faculta da vida
espiritual, pelos novos horizontes que desvenda e pelas leis que
revela, sancionar esse princípio, provando que ele não encerra uma
simples doutrina moral, mas uma lei da Natureza que o homem
tem o máximo interesse em praticar. Ora, ele a praticará desde que,
deixando de encarar o presente como o começo e o fim,
compreenda a solidariedade que existe entre o presente, o passado
e o futuro. No campo imenso do infinito, que o Espiritismo lhe faz
entrever, anula-se a sua importância capital e ele percebe que, por
si só, nada vale e nada é; que todos têm necessidade uns dos outros
e que uns não são mais do que os outros: duplo golpe, no seu
egoísmo e no seu orgulho.
Mas, para isso, é-lhe necessária a fé, sem a qual
permanecerá na rotina do presente, não a fé cega, que foge à luz,
restringe as idéias e, em conseqüência, alimenta o egoísmo. É-lhe
necessária a fé inteligente, racional, que procura a claridade e não as
trevas, que ousadamente rasga o véu dos mistérios e alarga o
horizonte. Essa fé, elemento básico de todo progresso, é que o
Espiritismo lhe proporciona, fé robusta, porque assente na
experiência e nos fatos, porque lhe fornece provas palpáveis da
imortalidade da sua alma, lhe mostra de onde ele vem, para onde
vai e por que está na Terra e, finalmente, lhe firma as idéias, ainda
incertas, sobre o seu passado e sobre o seu futuro.
Uma vez que haja entrado decisivamente por esse
caminho, já não tendo o que os incite, o egoísmo e o orgulho se
extinguirão pouco a pouco, por falta de objetivo e de alimento, e
todas as relações sociais se modificarão sob o influxo da caridade e
da fraternidade bem compreendidas.
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Poderá isso dar-se por efeito de brusca mudança? Não,
fora impossível: nada se opera bruscamente em a Natureza; jamais
a saúde volta de súbito a um enfermo; entre a enfermidade e a
saúde, há sempre a convalescença. Não pode o homem mudar
instantaneamente o seu ponto de vista e volver da Terra para o céu
o olhar; o infinito o confunde e deslumbra; ele precisa de tempo
para assimilar as novas idéias.
O Espiritismo é, sem contradita, o mais poderoso
elemento de moralização, porque mina pela base o egoísmo e o
orgulho, facultando um ponto de apoio à moral. Há feito milagres
de conversão; é certo que ainda são apenas curas individuais e não
raro parciais. O que, porém, ele há produzido com relação a
indivíduos constitui penhor do que produzirá um dia sobre as
massas. Não lhe é possível arrancar de um só golpe as ervas
daninhas. Ele dá a fé e a fé é a boa semente, mas mister se faz que
ela tenha tempo de germinar e de frutificar, razão por que nem
todos os espíritas já são perfeitos.
Ele tomou o homem em meio da vida, no fogo das
paixões, em plena força dos preconceitos e se, em tais
circunstâncias, operou prodígios, que não será quando o tomar ao
nascer, ainda virgem de todas as impressões malsãs; quando a
criatura sugar com o leite a caridade e tiver a fraternidade a embalálo;
quando, enfim, toda uma geração for educada e alimentada com
idéias que a razão, desenvolvendo-se, fortalecerá, em vez de falsear?
Sob o domínio destas idéias, que se tornarão a fé comum de todos,
não mais esbarrando o progresso no egoísmo e no orgulho, as
instituições se reformarão por si mesmas e a Humanidade avançará
rapidamente para os destinos que lhe estão prometidos na Terra,
aguardando os do céu.
Allan Kardec

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